Dissabores.
Ontem, 09/01, assistindo ao telejornalismo da Globonews, me deparo com Demétrio Magnoli. Há tempos não ouvia ou lia nada dele. Espero que fique mais muito tempo sem vê-lo ou ouvi-lo novamente. O douto geógrafo disse que os episódios em Brasília “não” são tipificáveis como terrorismo. Ainda mais, caso essa qualificação fosse imputada, disse o comentarista, ninguém seria preso, fato comprovado através das entrevistas de Flávio Dino, o ministro da justiça que não usou o termo. Vamos analisar: o que diz a lei?
Aspectos legais
Há no Brasil uma Lei Antiterrorismo, a lei 13.260 de 2006. O que diz a lei:
Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. [grifo meu]
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei. [grifos meus]
Tendo em vista a lei Antiterrorismo, Magnoli tem razão!
Não! “Magnoli tem razão” é uma contradição em termos. O predicado não pode ser atribuído ao sujeito logicamente.
Os criminosos de Brasília (vamos usar esse termo provisório) tem seus atos qualificados em vários outras leis como o Código Penal, por sinal revisto em (des)governo bolsonaro. O que diz o Código:
CAPÍTULO II: DOS CRIMES CONTRA AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
Feitas as devidas investigações policiais, os participantes dos episódios de Brasília no domingo, 08/01, podem ser facilmente enquadrados no Código Penal, entre outros. Mas vamos ao terrorismo.
Terrorismo
Entre um comentarista diletante e um dicionário especializado, fico com o último. O que dizem os dicionários de Ciência Política e Relações Internacionais sobre o tema? Um aspecto básico, os dicionários são unânimes em afirmar que o termo “terrorismo” é polissêmico.
Sendo um termo que se localiza no interface das ciências sociais e da política, é praticamente impossível chegar a uma definição pertinente e operacional, que não esteja automaticamente ligada a conotações negativas, razão pela qual os actores políticos a utilizam para desqualificar outros actores. (Dicionário de Relações Internacionais, Fernando de Sousa)
O mesmo dicionário, citando Raymond Aron, nos traz:
Segundo Raymond Aron, “uma acção violenta é denominada de terrorismo quando os seus efeitos psicológicos ultrapassam em muito os seus resultados puramente físicos”. (Dicionário de Relações Internacionais, Fernando de Sousa)
Alguém já se esqueceu da sequência de episódios violentos contra pessoas com símbolos de esquerda (foice-martelo, bandeira da URSS, foto de Guevara), símbolos de partidos de esquerda (PT, PSOL) ou apenas por estar trajando uma camisa vermelha? Isso se estabeleceu em 2015, com a sanha golpista contra a presidenta Dilma e só cresceu desde então. Chegamos a pontos altos em 2022 com vários episódios de violência física e mortes de pessoas por questões político-ideológicas. Uma manifestação do terrorismo, mas dá pra ir além.
Se a Lei Antiterrorismo não é aplicável aos terroristas de Brasília, a noção de terrorismo é. Isso com base no mesmo dicionário e na caracterização do termo pelo Parlamento Europeu:
Segundo o Parlamento Europeu (2001), o acto de terrorismo é “todo e qualquer acto cometido por indivíduos ou grupos que recorram à violência ou ameacem utilizá-la contra um país, as suas instituições, a sua população em geral ou indivíduos concretos, e que, alegando aspirações separatistas, por concepções ideológicas extremistas ou pelo fanatismo religioso, ou ainda pela avidez do dinheiro, visam submeter os poderes públicos, determinados indivíduos ou grupos da sociedade ou, de forma geral, a população a um clima de terror”. (Dicionário de Relações Internacionais, Fernando de Sousa)
Para fechar, o clássico Dicionário de Política, de Bobbio apresenta as características fundamentais do “atentado político” (atentado terrorista).
O atentado político que é, portanto, uma forma de aplicação do terrorismo não se extingue com este, mas representa o momento catalisador que deve desencadear a luta política, abrindo caminho à conquista do poder. Esta forma clássica de terrorismo apresenta algumas características fundamentais;
1) a organização: o terrorismo, que não pode consistir em um ou mais atos isolados, é a estratégia escolhida por um grupo ideologicamente homogêneo, que desenvolve sua luta clandestinamente entre o povo para convencê-lo a recorrer a:
2) ações demonstrativas que têm, em primeiro lugar, o papel de “vingar” as vítimas do terror exercido pela autoridade e, em segundo lugar, de “aterrorizar” esta última, mostrando como a capacidade de atingir o centro do poder é o resultado de uma organização sólida e
3) de uma mais ampla possibilidade de ação: através de um número cada vez maior de atentados. (Dicionário de política, Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino)
Os terroristas (já podemos usar o termo, apesar do diletante geógrafo) de Brasília tem formação ideológica homogênea e organizaram os ataques. Seu objetivo foi dar continuidade à lógica de inculcação de medo nos adversários políticos, entendidos por eles como inimigos. Finalmente, os episódios terroristas do último domingo foram apenas os últimos de uma cadeia que, mais recentemente, envolveu os atentados da Diplomação de Lula (12/12/2022) e a descoberta pela Polícia Federal da bomba em caminhão de combustível. Os terroristas tinham a dúvida sobre estacionar o caminhão no aeroporto de Brasília ou em uma estação de energia para produzir um apagão na cidade. Lembrando que o medo é inculcado mesmo sem o atentado ser bem-sucedido porque as pessoas projetam o que ocorreria caso o episódio fosse efetivado.
Concluindo, 1) sim, são terroristas. Caso não sejam tipificáveis na Lei Antiterror, são tipificáveis no Código Penal para fins de Justiça. E 2) são fartamente tipificados nos dicionários especializados.
Quando utilizamos a expressão “terrorista” para os agentes da barbárie de Brasilia, não utilizamos, claro, em termos jurídico ou em um tribunal. Isso ficará para juristas, advogados, promotores e juízes. O uso que um jornalista dá é político e vai além de mero juízo de valor: trata-se (como fartamente evidenciado acima) de uso com potencial precisão conceitual. O douto geógrafo deveria saber disso. Como não sabe, melhor confiar em especialistas, não em diletantes.
Dilentante: Que ou quem procura o prazer ou tem uma atitude superficial, sem mostrar maturidade, profundidade ou responsabilidade. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
Para mais:
Alteração do Código Penal: LEI Nº 14.197, DE 1º DE SETEMBRO DE 2021
Lei Antiterrorismo: LEI Nº 13.260, DE 16 DE MARÇO DE 2016
Os dicionários especializados podem ser encontrados na página de sociologia e antropologia deste geovest.
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